O presente artigo visa a analisar a necessidade da autonomia privada no reconhecimento da socioafetividade em famílias recompostas. Utilizando-se do método hipotético-dedutivo, estabeleceu-se três hipóteses relacionadas à constituição da família recomposta e a relação entre padrastos, madrastas e enteados, no sentido de verificar a necessidade da manifestação de vontade das partes para o reconhecimento da filiação socioafetiva dentro desse modelo de família. A metodologia utilizada foi a análise doutrinária, legislativa e jurisprudencial. Dentre os resultados alcançados, destaca-se a compreensão das famílias recompostas em suas mais diversas formas de existência, bem como da socioafetividade e seus requisitos e, por fim, a eleição de uma das hipóteses como a correta para responder à problemática do presente estudo.
1 INTRODUÇÃO
O tema socioafetividade possui amplo reconhecimento na sociedade atual. O ditado “pai é quem cria”, utilizado antigamente como um incentivo àquele que criava filho gerado por outro, está muito mais consolidado, com menos preconceito e maior abrangência. Isto porque, ainda que de maneira tímida, nos dias atuais há casos em que o pai reside com o filho e a madrasta exerce o papel de mãe, de modo que o referido ditado precisa de adaptação para as novas realidades familiares.
É visível a evolução do conceito de família por meio das várias modalidades de entidades familiares existentes. Dentre elas, merece destaque, neste estudo, a denominada família recomposta, caracterizada pela presença de membros de relacionamentos anteriores, ou seja, cônjuges ou companheiros que, ao se unirem, já têm filhos, trazendo-os para o mesmo lar conjugal e podem ainda decidir por gerar ou adotar filhos em comum.
Ocorre que, na mesma intensidade em que houve mudanças nas formações das famílias, não se pode afirmar que exista um padrão a ser seguido por elas, de modo que cada lar familiar tem determinada forma de conviver e relacionar-se. Em virtude desta diversidade, é necessário analisar a socioafetividade e compreender se a mera convivência entre os membros permitiria o reconhecimento de maternidade ou paternidade socioafetiva; ou se, para que este instituto seja reconhecido, haveria necessidade de manifestação da autonomia de vontade dos indivíduos que se relacionam nesse ambiente familiar.
Neste sentido, pretende-se, inicialmente, abordar a socioafetividade, suas características e requisitos, passando pelas noções de famílias recompostas e de autonomia privada, para, então, responder à problemática estabelecida, utilizando-se o método hipotético-dedutivo e mediante a análise doutrinária, legislativa e jurisprudencial. O principal objetivo deste escrito é compreender a relação do padrasto e/ou madrasta e seus enteados, a fim de concluir se todas as famílias com essa formação constituem efetivamente filiações socioafetivas independente da vontade dos membros.
2 A SOCIOAFETIVIDADE E AS FAMÍLIAS RECOMPOSTAS
A socioafetividade não é figura recente em nossa sociedade. Nas palavras de Rodrigo da Cunha Pereira, redigidas na apresentação do livro de Christiano Cassetari, “José não era pai biológico de Jesus e no entanto o teve como seu verdadeiro filho” (PEREIRA apud CASSETARI, 2015, p. xv2); em outros termos, ainda que não conhecida por este termo, a socioafetividade já existia nos tempos de Cristo, e, segundo o fato histórico relembrado pelo referido autor, o próprio Jesus foi filho socioafetivo de José.
A discussão acerca da necessidade de desvinculação da paternidade da questão biológica é tema de artigo científico de elevada relevância redigido em 1979 e que permanece atual e pertinente, uma vez que este assunto vem sendo objeto de reflexões desde muito antes da definição da nomenclatura “socioafetividade” em nosso ordenamento jurídico:
Qual seria, pois, esse quid específico que faz de alguém um pai, independentemente da geração biológica?
Se se prestar atenta escuta às pulsações mais profundas da longa tradição cultural da humanidade, não será difícil identificar uma persistente intuição que associa a paternidade antes como o serviço que com a procriação. Ou seja: ser pai ou ser mãe não está tanto no fato de gerar quanto na circunstácia [sic] de amar e servir (VILLELA, 1979).
João Baptista Villela, já no final da década de 70 do século 20, defendia a “desbiologização da paternidade” – que inclusive fora o título de seu artigo –, ou seja, retirar o vínculo da procriação com o reconhecimento da paternidade. Com o passar dos anos esse entendimento evoluiu até chegar-se ao termo socioafetividade.
Para que seja reconhecida a socioafetividade, como o próprio nome faz referência, é imprescindível a existência de laços afetivos.