O presente artigo visa analisar, com foco nos princípios da liberdade e da autonomia privada, o teor da decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal (RE 878.694/MG) que equiparou companheiro e cônjuge para fins sucessórios ao considerar o art. 1.790 da legislação civil inconstitucional. A metodologia de pesquisa utilizada se deu através do método hipotético-dedutivo, por meio de pesquisa documental junto ao Acórdão do Recurso Extraordinário julgado e baseado na análise doutrinária a respeito dos institutos abordados. Dentre os resultados alcançados, destaca-se a diferença dos institutos da união estável e do casamento e o foco aos princípios da liberdade e autonomia privada como garantidores da segurança jurídica, já que a lei previa consequências sucessórias distintas para cada uma das entidades familiares.
1 Considerações iniciais
As famílias estão em constante evolução e o Direito das Famílias, por sua vez, procura acompanhar tal evolução. Assim aconteceu quando a união estável passou a ser reconhecida no ordenamento jurídico brasileiro, por força da Constituição Federal.
Posteriormente, o atual Código Civil tratou das consequências jurídicas da união estável e estabeleceu diferenças entre essa forma de constituição de família e a constituição pelo casamento. Especificamente com relação às consequências sucessórias, tratou sobre a sucessão do companheiro e a sucessão do cônjuge nos artigos 1.790 e 1.829, respectivamente.
Em maio de 2017, o Supremo Tribunal Federal foi questionado acerca da inconstitucionalidade do art. 1.790, do Código Civil, dispositivo que versa sobre as questões sucessórias do companheiro. No caso levado a julgamento, o falecido não tinha descendentes ou ascendentes, apenas a companheira e irmãos; considerando que o casal constituiu uma união estável de fato, as consequências sucessórias aplicadas à companheira não lhe foram satisfatórias, visto que pleiteou os mesmos direitos que teria se casada fosse.
Nesse sentido, por meio do método hipotético-dedutivo, realizado pela análise dos votos do julgamento do RE n. 878.694/MG e com base no entendimento doutrinário sobre o tema, o presente artigo busca verificar se os princípios da liberdade e da autonomia privada foram levados em consideração na decisão que equiparou cônjuge e companheiro para efeitos sucessórios.
Assim sendo, o presente artigo (i) tratará das principais diferenças entre casamento e união estável; (ii) analisará os votos dos Ministros no julgado em questão, tanto o do Relator quanto o Divergente, bem como a argumentação utilizada pelos Ministros e, por fim, (iii) analisará os princípios da liberdade e da autonomia privada e sua relação com as questões emocionais vivenciadas pelos casais na escolha da melhor forma de constituição de família.
2 Casamento e união estável
A formação de uma família pode ocorrer de várias maneiras e por meio de diferentes institutos, dentre eles, o mais antigo e tradicional é o casamento. A família constituída a partir do casamento denomina-se “família matrimonial” e a proteção nele investida se dá exatamente em virtude das formalidades estabelecidas (CARVALHO, 2015, p. 151-152). De outro lado, não há no Código Civil conceituação de “casamento” ou “família”, tendo, no entanto, o legislador tratado de requisitos, finalidade, direitos e deveres dos cônjuges e definido a questão patrimonial (DIAS, 2015, p. 146).
Assim sendo, a formulação do conceito de família se deu pela doutrina. Por todos, Venosa (2011, p. 25):
O casamento é o centro do direito de família. Dele irradiam suas normas fundamentais. Sua importância, como negócio jurídico formal, vai desde as formalidades que antecedem sua celebração, passando pelo ato material de conclusão até os efeitos do negócio que deságuam nas relações entre os cônjuges, os deveres recíprocos, a criação e a assistência material e espiritual recíproca e da prole.
O formalismo atribuído a esta modalidade de constituição de família é visível em nosso Código Civil, eis que o primeiro “Subtítulo” trazido pelo Livro do Direito de Família é o do casamento, regido pelos arts.1.517 a 1.590 do Código Civil.
O casamento – ainda que a legislação não lhe dê uma definição específica – gera um “estado matrimonial”, cuja finalidade está disposta no art. 1.511 do Código Civil, qual seja, o estabelecimento de comunhão plena de vida com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges. Também, atribui seus efeitos, pois prevê encargos e ônus dele decorrentes, v.g. o art. 1.565 do Código Civil, que dispõe sobre a mútua responsabilidade dos cônjuges com relação aos encargos da família (DIAS, 2015, p. 147).
Tem-se, portanto, que o casamento é um dos arranjos familiares existentes no ordenamento jurídico brasileiro, pelo qual se estabelece vínculo conjugal entre as partes e, por via de consequência, a constituição de uma família.
Em sua concepção, há direitos e deveres a serem observados pelos cônjuges, dentre eles igualdade e mútua assistência. Indo além, percebe-se a relevância do aspecto patrimonial, visto que casamento é sinônimo de comunhão de vidas e, na maioria das vezes, comunhão de patrimônio também.
A união estável, por sua vez, é outro arranjo familiar existente no ordenamento jurídico, que passou a ser reconhecida formalmente com a alteração do art. 226, §3º, da Constituição Federal e, posteriormente, por meio do art. 1.723 do Código Civil. Entretanto, trabalhar o conceito de união estável é um dos desafios do Direito das Famílias contemporâneo (DIAS, 2015, p. 241). Sua definição doutrinária pode assim ser trabalhada:
A união estável é a entidade familiar constituída por duas pessoas que convivem em posse do estado de casado, ou com aparência de casamento (more uxorio). É um estado de fato que se converteu em relação jurídica em virtude de a Constituição e a lei atribuírem-lhe dignidades de entidade familiar própria, com seus elencos direitos e deveres. Ainda que o casamento seja sua referência estrutural, é distinta deste; cada entidade é dotada de estatuto jurídico próprio, sem hierarquia ou primazia. (LÔBO, 2014, p. 150).
O art. 226, da Constituição Federal, o art. 1.723, do Código Civil e a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 4.277/2011 estabelecem os requisitos legais da união estável: a) relação afetiva entre os companheiros; b) convivência pública, contínua e duradoura; c) objetivo de constituição de família; d) possibilidade de conversão para o casamento (LÔBO, 2014, p. 153).
Assim sendo, casamento e união estável são formas diferentes de constituição de família, isto é, arranjos familiares distintos, cada qual com suas particularidades:
O marco sinalizador do estado civil sempre foi o casamento. Nem é preciso repetir que a união estável e o casamento são institutos distintos, mas as sequelas de ordem patrimonial identificam-se. Com o casamento ocorre a alteração do estado civil dos noivos, que passam à condição de casados. Já a união estável, em geral, não tem um elemento objetivo definindo seu início, mas nem por isso deixa de produzir consequências jurídicas desde a sua constituição. (DIAS, 2015, p. 246)
Uma das características da união estável é a desnecessidade de documentar a família constituída, diferente do que ocorre com o casamento; a união estável é reconhecida independentemente de sua formalização mediante escritura pública que declare seu início. Em virtude dessa informalidade, é necessário tomar cuidado para não confundi-la com um simples namoro, já que a convivência sob o mesmo teto e o período que o casal está junto não são requisitos imprescindíveis para caracterização da união estável. Em virtude disso, tem-se o chamado “contrato de namoro”, em que as partes pactuam que a relação existente entre elas é tão somente de namorados e não de companheiros, exercendo a liberdade disciplinada pela Constituição Federal. Porém, a eficácia do contrato de namoro não é garantida:
Todavia, considerando que a relação jurídica da união estável é ato-fato jurídico, cujos efeitos independem da vontade das pessoas envolvidas, esse contrato é de eficácia limitada, apenas servindo como elemento de prova, que pode ser desmentida por outras provas. (LÔBO, 2014, p. 157).
Assim sendo, parte-se do pressuposto de que existindo dois institutos diversos para a constituição de uma família, o casal possui a liberdade e autonomia em optar por qual lhes é mais interessante, observando suas características e consequências.
No entanto, mesmo afirmando as diferenças existentes entre cada instituto, há doutrina que defende a necessidade de equiparação de suas consequências:
Sempre que o legislador deixa de nominar a união estável frente a prerrogativas concedidas ao casamento, outorgando-lhe tratamento diferenciado, a omissão deve ser tida por inexistente, ineficaz e inconstitucional. Do mesmo modo, em todo texto em que é citadoo cônjugeé necessário ler-se cônjuge ou companheiro. (DIAS, 2015, p. 242).
Partindo do entendimento, comungado por vários autores, que é necessária uma readequação da lei, de modo a estender os direitos e deveres dos cônjuges aos companheiros, é que se analisa a decisão do Supremo Tribunal Federal que trata das questões sucessórias e a posição do cônjuge e do companheiro.